
Uma cultura visual de décadas cria, no subconsciente dos desenhistas, um estereótipo visual depreciativo do negro.
Durante a pandemia, acho que em 2019, em uma aula virtual, apresentei uma animação que adoro: O Curupira – A série Eu Juro que Vi. Para minha surpresa, uma aluna comentou, bastante incomodada, que a animação era racista. Outros alunos passaram a concordar, e fiquei surpreso com aqueles comentários, até porque exibia essa animação como exemplo desde que comecei a dar aulas no curso de Design de Animação. Suspendi a apresentação, garantindo que iria me informar melhor sobre o assunto. A animação é esta que deixo para vocês avaliarem:
Na animação, o personagem malvado é o caçador branco, que quer caçar os bichinhos da floresta, e o personagem negro, carismático, tenta protegê-los ao longo de toda a narrativa — até que aparece o Curupira. O que sempre me motivou a mostrar essa animação foi justamente a temática nacional, a excelente produção visual, a animação fluída, os cenários lindos — além de ser uma obra muito premiada.
Passei o link da animação para dois ex-alunos meus hoje grandes amigos, ambos negros. A Andréia, que foi minha aluna no curso de Jornalismo, tem duas graduações, especialização em Jornalismo e um ano de estudos no Instituto Rio Branco, em Brasília. Ela concordou que a animação é racista tanto quanto a caracterização esteriotipada do negro, ainda acrescentou: “Primeiro já começa mostrando o negro como um serviçal do branco.
Segundo, os traços estereotipados… Mesmo que se inspirassem no Otelo, não se trata de conteúdo sobre o Otelo o que até poderia justificar algo, mas não é o caso.
Terceiro, o negro disfarça ter pego o macaco, mas as mãos que aparecem são as do macaco, como se fossem as dele. E por aí vai… Tudo tá ruim e errado.”
Mostrei também ao Felipe Tadeu, excelente animador e desenhista muito criativo, que disse que a confusão poderia ter ocorrido porque o desenhista utilizou um estilo conhecido como pickaninny — em que o personagem negro é representado como uma criança com grandes olhos, lábios vermelhos e enormes, geralmente careca (no caso dos meninos) ou com pequenas tranças com laços (no caso das meninas), falando com erros gramaticais como “dose” no lugar de those, e “mah” no lugar de my. Esse tipo de escrita é chamado de broken English (inglês mal falado ou “inglês quebrado”).


Essas informações tirei de um artigo indicado pelo Felipe — muito bom, por sinal. Recomendo fortemente o trabalho de conclusão de curso “A Imagem do Negro nos Quadrinhos e nas Produções Audiovisuais Infanto juvenis”, de Henrique Sampaio Wense. Ele realiza uma pesquisa muito completa sobre como o negro tem sido representado e como isso criou uma cultura visual depreciativa, influenciando negativamente os desenhistas — como, aparentemente, foi o caso dos criadores da animação.
Um dos primeiros personagens nos quadrinhos foi o Bilbolbul, criado pelo artista italiano Atilio Mussino em 1908. É considerado o primeiro quadrinho italiano, e provavelmente, o primeiro personagem negro principal de uma história em quadrinhos. Era extremamente estereotipado, mostrando uma versão deturpada do povo africano, como os futuros personagens afrodescendentes criados até o começo da década de 50. Bilbolbul, em uma tirinha onde muda de cor a cada emoção diferente.

Posso contribuir com o artigo do Henrique registrando aqui o caso do belga Hergé, criador de Tintim. De suas 24 aventuras em quadrinhos estreladas pelo jornalista, nenhuma provocou tanta polêmica quanto a que retrata sua passagem pelo continente africano. A história, lançada no Brasil há 38 anos como “Tintim na África”, foi recentemente relançada como “Tintim no Congo”, título mais fiel ao original (“Tintin au Congo“).

Quando esta HQ foi relançada pela editora Egmont, na Inglaterra, em 2005, trazia um aviso informando que continha estereótipos e que alguns leitores poderiam considerá-la ofensiva. Em 2007, a Comissão para Igualdade Racial (CRE) pediu às livrarias britânicas que retirassem a HQ de suas prateleiras, devido ao conteúdo racista. A editora norte-americana Little, Brown, também em 2007, anunciou uma caixa com todas as HQs de Tintim, exceto por este álbum, que seria publicado separadamente. (Informações de Pedro Cirne para o UOL.)
Como não pretendo escrever um tratado sobre ilustração e racismo — tarefa já muito bem realizada por Henrique, que mais uma vez recomendo a leitura —, vou me ater a mostrar como, ao longo dos anos, algumas produções audiovisuais foram aperfeiçoando e melhorando suas representações visuais de personagens negros.
Alguns exemplos de como muitos desenhistas ao tomarem consciência desse problema corrigiram seus personagens.




Esses dois são exemplos de ótimas soluções para o desenho de personagens negros desenhados pelo Felipe Tadeu, ex-aluno do Curso de Design de Animação da UFSC
Percebi que nunca cometi esse “erro” involuntário porque meu desenho não é estilizado. Mesmo no desenho de humor, procuro preservar as características do caricaturado. Uma das marcas do estilo I é a boca em forma de círculo enorme, com um buraco no meio — exatamente a caracterização do personagem principal da animação. Soube também que os autores da série se inspiraram no Grande Otelo, famoso ator negro que participou de inúmeros filmes na década de 1960 e também na televisão.]


Fica a lição de que estamos sempre aprendendo. Se tive alguns erros na vida acadêmica, foi justamente por não ter sido acadêmico o suficiente. As áreas em que atuei — tanto no Jornalismo quanto no Design — sempre foram técnicas, muito dinâmicas, o que me obrigava a estar em constante atualização. Em algum momento, deixei isso de lado o aprendizado da criação de personagem, meu curso de graduação foi de artes e na minha época não existia esse tipo de discussão. Mas aprendi mais uma vez. Ganhei uma nova e excelente aula para ministrar, que deixei pronta para meu sucessor na disciplina de Criação de Personagem, para evitar que os novos desenhistas não cometam a eternização deste estereótipo grosseiro.
Excelentes reflexões, Clóvis! Aprofundou muito bem o tema, a partir do comentário de sua aluna. Eu sabia que havia contestação nesta forma de caricaturar personagens negros, mas nada com tantos detalhes. Existe controvérsia parecida com asiáticos, também, até por conta da campanha midiática após o ataque a Pearl Harbor pela aviação japonesa e a entrada dos EUA na II Guerra. Fora das animações, com atores reais maquiados para representar outras etnias, existem os termos blackface e yellowface (um exemplo deste último aparece num filme que eu gosto muito, o Bonequinha de Luxo, com Audrey Hepburn). Precisamos aprender sempre 🙂
Valeu, Romeu, se der, baixa o TCC que anexei e vai enriquecer mais os teus conhecimentos de quadrinhos sob uma outra ótica, aprendi muito com o trabalho do Henrique.