
Mesmo com uma estrutura simples, muitas vezes limitada a apenas quatro quadros, uma tira de HQ segue a mesma lógica fundamental de um romance de quinhentas páginas.
A essência está na narrativa dramática, que remonta aos princípios estabelecidos já na tragédia grega: a quebra da ordem, do cosmos. Quando a harmonia de um universo é rompida, nasce a tragédia — e, com ela, o elemento essencial de qualquer história: o conflito.
Na Grécia Antiga, Aristóteles já descrevia na Poética que toda tragédia deveria ter início, meio e fim, e que seu motor era o conflito que levava o herói à queda (hamartia), seguido da catarse do público. Essa lógica atravessou séculos e permanece viva até hoje, seja em um épico literário, em um filme… ou mesmo em uma simples tirinha.
Sem conflito, não existe narrativa dramática. É o conflito que rompe a rotina, que dá origem à notícia, que desperta a atenção. Durante anos em que trabalhei no Diário Catarinense, em Florianópolis, testemunhei isso na prática. Nas reuniões de domingo, o editor-chefe perguntava ao responsável pela editoria policial sobre o trânsito na BR-101. Se a resposta fosse: “tranquilo, apenas três ou quatro mortes, nada de especial”, não havia manchete. Mas se fosse: “um ônibus tombou, vinte mortos”, ali estava a notícia. O cosmos havia sido rompido — e tínhamos um drama para contar.
Isso vale também para a literatura e os contos infantis. O abandono de João e Maria na floresta, a ordem cruel da Rainha para que o coração de Branca de Neve fosse arrancado… todos são exemplos de rupturas da normalidade que dão origem à narrativa dramática.
A estrutura básica da narrativa
Tradicionalmente, uma narrativa segue quatro etapas:
Início
Desenvolvimento
Clímax
Desfecho
Mas para que essa estrutura funcione, é indispensável o conflito — o fato que dá vida à história. Além disso, é preciso um protagonista com personalidade cativante e um antagonista à altura. Só então temos os ingredientes necessários para a boa narrativa.
A tirinha como microdrama
Parece simples, mas por trás de uma tirinha que circula em jornais ou redes sociais, existe a mesma lógica dramática. Vou usar como exemplo uma das minhas tiras mais conhecidas, que chegou a viralizar na internet, com centenas de milhares de compartilhamentos. Em apenas quatro quadros, ela continha todos os elementos de um drama:

Quadro 1 – Início
Um cãozinho no banco de trás de um carro, feliz: “Oba! Adoro passear de carro!”.
Quadro 2 – Desenvolvimento
O mesmo cãozinho, ainda contente, cochilando: “O balanço dá um soninho”.
Quadro 3 – Clímax
O cãozinho aparece na mesma caixa, agora no chão, enquanto o carro se afasta ao fundo: “Eba! Brincadeira nova!”.
Quadro 4 – Desfecho
A virada: o que parecia um passeio comum se revela um abandono. O cosmos do cãozinho é rompido, e sua vida passa a ser apenas uma grande interrogação.
Em quatro quadros, temos todos os elementos de uma narrativa dramática:
- Herói: o cãozinho.
- Vilão: o humano que o abandonou.
- Conflito: o ato de abandono, contraposto à moral, consciência social e humana.
Uma tirinha pode ser breve, mas carrega o mesmo peso narrativo de histórias muito maiores. O segredo está em criar a ruptura, o conflito, e transformá-lo em emoção capaz de alcançar o leitor.